Sete dias foi quanto uma médica pernambucana aguentou na favela antes de desistir do emprego em 2017
Via Notícias ao Minuto
25.11.2018
25.11.2018
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© Nacho Doce/Reuters |
Nas paredes e vidraças, 12 marcas de bala. Na entrada, uma sala de espera vazia, transferida para um auditório escondido da linha de tiro. Nos fundos, uma porta de emergência, construída para facilitar a fuga em caso de confrontos armados.
Pode parecer um bunker de guerra, mas é a
clínica da família Ministro Adib Jatene. Ela fica no meio do complexo de
favelas da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, de frente para uma rua com
conflitos recorrentes entre policiais e traficantes de drogas.
Sete dias foi quanto uma médica
pernambucana aguentou ali antes de desistir do emprego em 2017. Desde o início
do ano, há três vagas para brasileiros no programa Mais Médicos, de um total de
12, sem reposição por falta de interesse.
O risco de ser atingido por disparos que
afugenta os médicos brasileiros das unidades de saúde em favelas do Rio é mais
um desafio do governo federal desde a semana passada -quando os médicos cubanos
começaram a deixar o Brasil após o fim do convênio entre os dois países.
Só eles que ocupavam de forma duradoura esses postos, que sofrem
com a alta rotatividade de profissionais brasileiros assustados com os
episódios de violência. Havia 224 cubanos do programa no estado e 41 na
capital, a grande maioria em áreas periféricas.
Era o caso de Liliet Karin Cruz, que passou dois anos na unidade
da Maré. Antes atuava na clínica da família Palmeiras, no alto do Complexo do
Alemão (zona norte).
O motivo da transferência foi o fechamento definitivo da clínica
do Alemão, que atendia quase 10 mil pessoas por mês, depois que policiais
invadiram e usaram o local como base para disparar tiros durante um confronto
com traficantes, em dezembro 2016.
Ela socorreu uma enfermeira que desmaiou e um colega que teve
convulsões. Orientou equipe e pacientes a se deitarem no chão, onde se arrastou
para checar se todos estavam bem. No dia seguinte, funcionários enchiam as mãos
com cápsulas de balas recolhidas.
Na unidade em que atuou até a semana passada, na Maré,
funcionários já sabem que o risco é iminente quando o caveirão blindado da
polícia surge na via expressa mais próxima da clínica -que foi alvejada nove
vezes nos últimos dois anos.
O procedimento padrão é fechar o portão, correr para as salas
mais protegidas e esperar o tiroteio passar. A decisão de retomar o atendimento
ou ir embora depende de uma consulta a uma rede de contatos locais, incluindo
moradores, agentes comunitários e até traficantes.
No último ano, os tiroteios levaram a fechamentos temporários de
clínicas no Alemão, Maré, Jacarezinho (zona norte) e Vila Kennedy (zona oeste).
Para além dos conflitos armados, a violência impacta no dia a dia desses
profissionais de outras formas.
Em uma cidade violenta da Baixada Fluminense, por exemplo, o
medo de represálias de milicianos impediu uma equipe de médicos de denunciar
uma adulteração de exames de sífilis pela prefeitura, segundo conta um
supervisor do Mais Médicos que pede para não ser identificado.
A reportagem conversou com seis gerentes, colegas e supervisores
de médicos cubanos em áreas de conflito no Rio, além de pacientes, que
defenderam a sua atuação. A principal diferença, dizem, é que eles se aproximam
mais dos pacientes e estão sempre presentes.
Segundo os relatos, os estrangeiros
cumprem à risca as 40 horas semanais de trabalho, enquanto brasileiros às vezes
faltam ou descumprem a carga horária -muitos veem o emprego como temporário e
atuam em outros locais.
"Os médicos brasileiros não param no posto. Antes da cubana
chegar, cada hora a gente era atendido por um", conta a dona de casa
Charla Muniz, 45, moradora da comunidade Manguariba (extremo oeste).
"Na relação interpessoal, os cubanos também têm mais
facilidade", diz Carlos Vasconcelos, médico de família na Maré. "O
brasileiro vem de classe mais alta, então tem dificuldade de dialogar com
aquela população, num lugar sem saneamento, com fuzil na porta."
Se a língua é uma barreira transponível (às vezes com a ajuda de
enfermeiros), as diferenças na formação e na estrutura do sistema de saúde dos
dois países podem causar dificuldades para os cubanos.
"Às vezes eles usam uma medicação ou técnica diferente pelo
fato de o sistema deles ser mais simples, mas não compromete", diz um
supervisor da região da Baixada. "Os que eu supervisionei não eram
tecnicamente excelentes, mas oscilavam num nível aceitável."
Garcia Vergara, também supervisor de médicos do programa e
coordenador do curso de medicina da família na Universidade do Estado do Rio,
avalia que "o cubano é mais focado na doença, e o brasileiro, no
paciente". "Não quer dizer que são ruins, a formação é boa, mas
diferente."
Além das 32 horas de trabalho e 8 horas
de especialização e estudos semanais obrigatórias no programa, os estrangeiros
recebem um mês de aulas de português e treinamentos com protocolos brasileiros.
Eles não precisam revalidar seu diploma no Brasil.
Para a empregada doméstica Helena A., 56, porém, que sofre com
problemas renais, a única preocupação é a falta de médicos. "Deus queira
que consigam repor essas vagas. Não importa ser cubano ou brasileiro, desde que
tragam mais gente para a Maré", diz. Com informações da Folhapress.
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